Quantos países moram nas ruas de Curitiba?
Rafael Greca de Macedo*
Curitiba é das poucas cidades deste país que faz por inteiro a vontade do poeta: ...
“quero uma rua que passe por muitos países...”
Há o velho Portugal, matriz da colônia, erguido em argamassa de pedra nos muros de janelas seteiras da Igreja da Ordem.
Este mesmo Portugal das paredes caiadas, das janelas verdes, e dos telhados com eira e beira, que se vê na Casa Romário Martins, coração da memória da cidade.Portugal ainda vive no traçado das ruas do Setor Histórico e na devoção original que deu seu nome à vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, nos idos de 1693.
Quantos países moram nas ruas de Curitiba?
A Alemanha e a Áustria moram. Eu as vi outro dia, nos sobrenomes e nos cabelos das sócias do Clube Concórdia. Todos sabem que elas estão presentes nas torres em agulha da nossa quase centenária Catedral. E no zimbório esperando neve do primeiro templo evangélico Luterano, ali na Rua Inácio Lustosa.
Não serão germânicos os pínheirinhos de Natal com neve de algodão, os pães de mel da padaria “ América”, do saudoso Bruda Engelhardt, as broas de centeio de todos os cafés no final das tardes?
Quantos países moram nas ruas de Curitiba?
A Itália está aqui. No Palácio Garibaldi, que faria bonito em Florença ou em Roma. Fachada neo-clássica, escadaria de granito, portal monumento, e uma pedra polêmica nos jardins, memorial da batalha de Monte Grappa, disputado com a Sociedade Dante Aligherí. Fantasmas italianos fazem cortejos de carrocinhas, nos dias de cerração, pelo vale do rio Uvú, rumo a Santa Felicidade, a Colombo ou à Colônia Dantas, o velho nome da Água Verde. Dizem que a Casa Calixto é mal assombrada. 0 velho ranzinza que a habita reforça a lenda: não deixa ninguém entrar. Mas juro que vi a Itália, com suas paredes rosadas, e o seu perfume mediterrâneo, passando pelo portão.
Também percebe-se presença italiana em todo o vime trançado, toda polenta frita e todo vinho vertido nos caminhos que levam a Santa Felicidade.
Quantos países moram nas ruas de Curitiba?
A Polônia por certo. Suas dores, saídas das cicatrizes da Virgem Negra de Czestochowa, se derramam nos altares. Seus gostos lambuzam as broas, com creme de raiz forte e geléias camponesas de framboezas e amoras. Seu trabalho se percebe nos campos, memória de tantas colheitas.
Quem me dará pão e sal, sinal eslavo de boas-vindas, na porta da casa de troncos? Quem pintará de cor viva os beirais da nossa casa de tábuas? Quem, paciente, fará as cestas de Páscoa, para a “Swieconka”, bênção do sábado de Aleluia? É preciso ouvir as mazurcas que vêm dos salões do Clube Juventus. É preciso reclamar sempre. Viver é perseguir a perfeição. “Que tempinho, heim... - E a chuva caí sobre Curitiba... “pena que não é neve... ” dizem os poloneses.
Quantos países moram nas ruas de Curitiba?
O Japão foi visto outro dia. Saia de uma barraca do Ceasa. Já não era pasteleiro, nem tintureiro. Entrou para a universidade. Agulhas espetam neurônios e espantam neuroses, na arte da acupuntura. Ouvem-se gritos marciais. Samurais ocuparam uma casa no Bigorrilho. Toca o gongo milenar entre as paredes da Sociedade Glória. Já há cerejeiras em flor na avenida Sete de Setembro, perspectiva da fonte dos Anjos de Jerusalém.
Quantos países moram nas ruas de Curitiba?
Os herdeiros da herança sarracena ergueram minaretes no alto de São Francisco.
Turcos, árabes, sírios e libaneses, prosperaram com bazares orientais, ofertando sedas e especiarias no centro da cidade. A barganha aprendeu português, debaixo da luz elétrica das frutarias da praça Tiradentes.
Seriam os únicos orientais? Que nada. Há um pedaço da China, recheado de palmito e cebolinha, no finíssimo pastel da Voluntários da Pátria. E há também Israel, na eterna arte do comércio, vibrando com o shofar da sinagoga, construindo a paisagem da cidade, inventando a moda do dia seguinte.
Quantos países moram nas ruas de Curitiba?
A Ucrânia resiste e sobrevive aqui.
Memórias dos trigais das estepes permanecem na devoção a Santa Olga e São Valdomiro, Na União Agrícola Instrutiva, ensaiam-se os passos das "hailkas", cirandas de primavera. Mãos pacientes pintam e bordam em ponto de cruz, toalhas e pessankas precisam repetir a eterna novidade da Ressurreição, na missa da Páscoa.
Muralhas de ícones separam os fiéis do santuário, debaixo de cúpulas em forma de bulbo de cebola, nas Igrejas das ruas Cândido Hartmann e Padre Agostinho, e da Vila Guaíra. O linho é trançado para enxovais e mortalhas. 0 som das banduras parece o vento soprando no trigo maduro das estepes . As velas de cera de abelha se consomem enquanto litanias intermináveis repetem aqui a liturgia de São Basílio Magno.
Quantos países moram nas ruas de Curitiba?
Aqui se ouvem as vozes da África. No batuque das escolas de samba, desfilando sua pureza no empobrecido – e perseguido - carnaval da cidade. Nos tambores dos terreiros de umbanda, onde até almas eslavas envolvem-se em ervas de aruanda para chamar entidades do outro lado do mar.
O Brasil diferente habita endereços espanhóis, ingleses, latino-americanos, húngaros, suecos, romenos, suíços, holandeses, suábios, tchecos, eslovacos e até australianos.
Uma igreja mediterrânea, com saudades do azul do mar, atesta a presença dos gregos, numa colina da Rua Mateus Leme.
Quantos países moram nas ruas de Curitiba?
É o Brasil que vive por inteiro em Curitiba. Nas lutas de todo o dia, na paciência inesgotável da nossa boa gente, nas injustiças a serem vencidas.
Há um ar brasileiro envolvendo toda a cidade, com o verde generoso da esperança. Esta virtude que nunca anda sozinha e tem sido companheira da nossa brava gente.
É doce viver em Curitiba, e poder ter o mundo inteiro na palma da mão.
* Rafael Greca de Macedo, engenheiro urbanista . Pré candidato a prefeito (PMDB). Foi Prefeito de Curitiba , Deputado Federal, e Ministro de Estado. É da Academia Paranaense de Letras.
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